10 fevereiro, 2009

Pátria minha

Voltei há exatamente uma semana para a minha terra de origem. São sete dias que me separam de algo completamente diferente, como se fosse uma outra vida que eu mantinha em Curitiba. Não sei explicar exatamente o que mudou. Só sei que os ares daqui me botam comovida como o diabo.
Cada pequeno detalhe, que antes me era tão familiar, agora é uma novidade. A primeira coisa que se nota ao chegar aqui é o bafo quente que bufa sem parar. Não dá sossego nem à noite, o que nos obriga a todos a dormir com o ventilador ligado no último. Tento me lembrar de como eu fazia para permanecer viva em outros tempos. Quando, por exemplo, eu era criança e tinha medo de dormir sem me cobrir com o lençol. Não sei como sobrevivi a tantas noites escaldantes e tive saúde suficiente para ir para a escola de manhã com aquele uniforme de poliéster. Ou então como eu conseguia sair por aí de bicicleta às três horas da tarde, ou brincar de handeball louco (a especialidade da garotada do bairro) naquela pracinha calçada com pedras que ferviam à luz do sol. Lembro até que a grama esturricada nas extremidades do nosso campinho serviam como marcação para as duas traves do gol; só faltava colocar alguns chinelos por cima para ficar mais claro para os jogadores afobados em marcar. Havia me esquecido de tudo isso, não por não sentir saudades, mas por puro e banal esquecimento, que não tem porquê, acontece, simplesmente.
Ontem fui para o bar com alguns amigos. Apesar de não haver esquecido, tampouco me lembrava com clareza de como é a noite mariliense. Não importa quantos bares têm na cidade: todo mundo vai para apenas um. Se você quer sair, tomar uma cerveja geladinha e não sabe para onde seus amigos vão, não há dúvidas: vá ao Chaplin. Ele é caro, não dá pra pedir nem uma porção de fritas, mas dá todo tipo de gente. Desde nós (o pessoal mais esculachado do noroeste paulista) até as meninas de cabelo amarelo alisado com chapinha e os meninos que usam regata para mostrar os braços e ganhar as meninas de chapinha. Bem, estava no bar e fazia calor. Havia algumas máquininhas, como postes, que jogavam vapor de água para refrescar a galera. Estávamos lá, suando, bebendo a autêntica Brahma agudense que não existe em nenhum outro lugar do mundo. E ela estava trincando... Isso me fez pensar. Esse pedaço de estado paulista é intrigante.
Marília é, sem dúvidas, uma cidade engraçada. Constrastando com o calor, o povo daqui não é aquilo que se pode chamar de acalorado. Alguns o são, mas a maioria tem ares de cidadãos de uma metrópole, como se isso os tornassem algo acima do bem e do mal. Bom, o que posso dizer é que Marília pode ser uma cidade relativamente grande, tendo em vista que possui quase 250 mil habitantes e é considerada a "capital nacional do alimento", como ostenta, orgulhosa, a plaqueta disposta na entrada da cidade. Mas não age como tal. Para mim, no máximo, é como um bom e grande feudo. O nosso senhor feudal, Dom Camarinha, excepcionalmente não é o atual prefeito, mas nem por isso manda menos. Afinal, o Bulgarelli (este sim, prefeito reeleito) é seu melhor laranja. Ops! Quis dizer amigo, foi mal.
Camarinha tem visto seu poder diminuir desde o trágico e surpreendente caso da queima do jornal. Vivo contando essa história por aí, porque é muito divertida: camarada Camarinha era o dono do maior jornal de Marília, o Diário. Quer dizer, ele não era o dono, mas mandava de qualquer maneira, porque o editor-chefe, José Ursílio, também era o seu melhor laranja. Agora eu realmente quis dizer laranja. Por uma briga envolvendo dinheiro, intrigas e apelações judiciais, Camarinha e Ursílio se separaram. O jornal, então, faz denúncias escabrosas contra o político. Camarinha se vinga. Ninguém nunca pôde provar, mas é quase certo que ele contratou uma cambada de capangas (incopetentes, diga-se de passagem) para botar fogo na sede do jornal Diário e na rádio homônima. Esta era a sua demonstração de poder. Pouco tempo depois, um grupo de mascarados entra na casa de Camarinha, para um suposto assalto mal-sucedido, e matam seu filho. Rafael Camarinha, provavelmente o herdeiro do trono, foi morto. A história, claro, estava muito mal-contada. Quem sou para afirmar alguma coisa? Só sei que os dois acontecimentos são muito catastróficos para não serem relacionados.
De qualquer maneira, nenhum desses fatos sequer foram realmente analisados. Uma cambada de outros laranjas foram para trás das grades, os peixes grandes continuam a nadar. Claro. Camarinha hoje é deputado federal. Seu filho mais velho, Vinícius, é deputado estadual. Os dois fazem parte do PSB - Partido Socialista Brasileiro. Hehe. Zé Ursílio ainda usa seu jornal para esculachar seu antigo parceiro. Ele ainda não sabe usar vírgulas e é monotemático.
O mais engraçado de tudo foram as eleições deste ano. Quem concorreu à prefeitura: Bulgarelli (o laranja), Vinícius Camarinha (o filho) e José Ursílio (a oposição sem noção). Bulgarelli venceu. Mas o clima de piada ainda continua por aqui. Afinal, que outra cidade 'grande e desenvolvida' tem tantos crimes políticos dignos de um povoado dos anos 1800 quanto Marília? É triste. Digo isso porque eu amo isso aqui. Essa terra vermelha, quente, árida, poeirenta, esturricada, onde as mulheres se equilibram em seu salto alto e protegem os cabelos da fumaça, essa partezinha de território brasileiro com cheiro de bolacha em toda parte e com um povo que reclama do frio sempre que venta.

Bem, hoje é véspera de Natal, estou em casa, com minha família, me entupindo de panetone e esperando Papai Noel chegar. Estou imensamente apaixonada por toda essa vida diferente. Quer dizer, sei que me apaixono porque sei que a vou abandonar em poucos dias, para começar tudo de novo outra vez lá no Paraná. Não sou mais criança e o Natal já perdeu aquela magia que tinha antes. O que me comove, agora, é estar onde nasci, com as pessoas que estiveram comigo por toda a minha vida, e perceber que não me enjoei de todas estas tradições. Talvez essa seja a minha maneira de dizer Feliz Natal. Talvez seja só um jeito de falar sobre um jornal queimado e sobre um moço executado.

(Original: http://odiazepam.blogspot.com/2008/12/ares-da-minha-origem.html - 24/12/08)


09 fevereiro, 2009

O verdadeiro sonho americano

Com um carro alugado e o porta-malas lotado dos mais diversos tipos de alucinógenos, os dois cruzam estradas insólitas e desérticas. O ideal almejado é o mesmo: adentrar o coração do chamado Sonho Americano. E eles o fazem sem cerimônias, chutando a canela de quem quer que esteja na frente. Arrombam as portas do conservadorismo estadunidense, debocham dos sonhos medíocres da classe média e atropelam toda e qualquer moralidade, com o objetivo único de desnudar a América. A América do submundo, dos bares de beira de estrada, dos marginais, da cultura transgressora; a América dos loucos, que pertencera aos beatniks e, mais recentemente, aos hippies. Por fim, a América que o tal do american way of life, tão propagandeado ao resto do mundo, tentava ocultar – mas que, na realidade, é o seu mais profundo âmago.

"O que eu estava fazendo aqui? Qual era o sinificado desta viagem? Estaria eu apenas vagando por aí por alguma agitação vinda das drogas? Ou eu realmente havia vindo a Las Vegas para escrever uma reportagem? Quem são essas pessoas, esses rostos? De onde elas saíram? Elas parecem caricaturas de vendedores de carros usados de Dallas e, por Deus, há um monte delas às 4h30 de um domingo de manhã, ainda buscando o Sonho Americano, aquela visão do grande ganhador emergindo do caótico último minuto pré-amanhecer de um velho cassino de Vegas".

"Muito estranho para viver, e muito raro para morrer”, diz Raoul Duke, alter-ego de Hunter S. Thompson no livro Fear and Loathing in Las Vegas. Ele se referia ao amigo, sob a alcunha de Dr. Gonzo, mas também a si mesmo e a toda a corja de malfeitores que fazem o mundo girar. E giram com ele. Thompson escancarou o jornalismo, enfiando o dedo nas feridas da América selvagem e berrando opiniões. Mas só até 2004, quando meteu um tiro na cabeça após uma longa vida de idas e vindas, letras, medos e delírios. A busca pelo Sonho Americano ainda não acabou - ela continua imersa em todos os outros insanos sofredores apaixonados que renascem todos os dias em suas estranhezas.

06 fevereiro, 2009

Doer

As feridas vão se abrindo ao contrário do desabrochar das flores; é algo mais corrosivo, incômodo, dá ânsia, angústia. Vão crescendo como galhos pontudos, sem direção, para todos os lados, crescendo finos, crescendo tortos, ocupando espaço, alcançando o céu. Sem folhas, só galhos. Assim vão se abrindo os buracos, carregados de botões de nada (que o nada é o que mais fere, que o tédio machuca mais que uma punhalada). E o medo, o medo de que um dia essa fome de vida acabe, que não exista mais tanto interesse por tudo quanto há no mundo que chega até a doer no peito.

Será que todas essas pessoas que a gente vê na rua ou no ônibus vivem tanto assim? Sabem, viver tanto que chega até a dar vontade de morrer? Elas vivem, certo. Mas será que choram, se dóem, e riem, e sofrem, e correm, e amam amam amam, e não dormem nunca, nem por um segundo, e quando dormem têm sonhos intranqüilos, e se angustiam, e se maravilham, e dão abraços, e se emocionam com uma nadica de coisa, e caem caem caem, e têm pequenas vitórias, e têm pequenos enormes prazeres, e falam falam falam, e ficam quietas, e querem morrer, e querer arder, e querem viver, viver!, e querem não sair da cama, e não se reconhecem no espelho, e imaginam tudo que poderiam ter sido, e sofrem até o peito não agüentar mais, e têm saudades, e bebem, e fumam, e se estragam, se acabam, se queimam queimam queimam até não sobrar quase nada, e têm raiva, e se contradizem, e querem mudar tudo, e ai! que preguiça, e pulam da cama, e escrevem freneticamente na madrugada de um domingo para segunda, poucos minutos antes de amanhecer, mas só querem escrever, soltar tudo, sangrar tudo, mesmo que seja um texto assim medíocre como esse, mas que carregue todo o peso do seu sangue, dos seus sonhos, de tudo que perderam e que amaram, de tudo o que suaram?

Meu ser, minha alma, minha lama.