27 abril, 2009

Abismo

Voando ao meu lado está ele, me olhando com olhos que não sei o que querem dizer. Me toca a mão enquanto atravessamos o oceano.

Em cima de mim está ela, tão fraca, tão triste, mas tão alto e sempre acima. Olha pra mim pra ver se estou bem e para os lados por medo. Voando assim, nem parece aquela de antes, que só se arrasta, mas nunca por querer.

Mergulhamos no abismo e aí eu vejo todos os que voam atrás, me seguindo, e essa liderança não é por merecimento ou escolha, é só porque o sonho é meu. São todas as pessoas do mundo. Todos que um dia já cruzaram meu caminho, mesmo que eu não tenha reparado em seus rostos. Os amores, as tristezas, as decepções, aqueles que seguraram minha mão e os outros que me disseram coisas ruins, mesmo sem querer. Todos os personagens de livros que se tornaram companhia para a solidão, os ídolos, os cantores tristes com suas músicas de partir o coração, os professores que me falaram para ir em frente e também os que não sabiam meu nome, os cachorros, os gatos, os coelhos imaginários... Eles vão me seguindo para onde vou e o peso nunca é forte nos ombros. Porque eles estão atrás de mim, apesar de ainda assim me dizerem sempre a direção.

16 abril, 2009

As flores do vento chamam meu nome e sussurram que lá o tempo é mais doce. Mas há um nome gravado em minhas pálpebras que deixa tudo mais pesado, e mais denso, e mais escuro, e o nome também está cravado em meus dedos e se imprime em tudo que toco e vejo, e me impede de ir.

Olho para os lados e o vento sopra e diz coisas bonitas, mas percebo que os móveis do quarto estão todos no teto, as janelas estão abertas, e todo mundo está lá, e querem sair, e me puxam para a janela, e os móveis todos caem, e tudo é tão bonito, e colorido, e festivo, e todos se jogam pela janela e sopram pra onde o vento vai, e tudo dança ao meu redor, me pegam pelo braço e assopram em meu ouvido, e dizem 'vem', que quando olho pra mim estou inerte, ridiculamente inerte, e todos já se foram, cada um para seu canto, soltos, e eu fico, e eu choro.

'É o crepúsculo', dizem, e tudo parece bom e correto, eu tenho que ir, tenho que sair, mas o nome está lá, em tudo, e até ele me olha e diz 'vai', mas há o peso, ah, o peso, porque o nome sempre muda de nome, e o que se fez de toda a leveza do mundo? Deve ter morrido junto com meu avô, que quando foi não disse nada, mas não deixou dúvidas, não deixou tristeza, não deixou quase nada a não ser poucos e vagos gestos, apenas um 'oi, negona' e alguns livros e mapas, quem sabe esses mapas algum dia me levem até ele, pois são mapas dos céus, mas quem sabe esses mapas não levem a lugar algum, só a um terço que persiste, que é jogado, perdido, achado, mas sempre está lá, e isso dá tantas esperanças a um coração tão cansado de ter esperanças.

Se apenas eu fosse, e se tudo parasse, mas o vento é tudo que mais desejo, que é sossego e desespero, que então pergunto o que foi feito de toda a calmaria do mundo? Foi-se junto com ele, e de todos os outros que saltam pelas janelas e vão embora, mesmo os que não sopraram com o vento e ainda estão por perto, mas se foram, e essa leveza, se essa leveza existisse, se eu pudesse sentir, mas ela só leva tudo embora e me deixa aqui, porque há esse nome pesado sempre mudando em minhas pálpebras e em meus dedos, e em tudo que toco e vejo, e tudo que sinto e desejo, nos sonhos e em todas as pequenas coisas, mas eu acabei me afeiçoando a ele, o peso fica aqui, porque sem ele tudo seria mais leve e então eu não saberia o que fazer, eu fugiria de novo, e mais uma vez, sempre procurando o leve escondido, mas tudo acaba se tornando pesado. E não acaba, não acaba.

08 abril, 2009

você inspirou as cores

01 abril, 2009

É como acordar quando todos já foram dormir. Abrir os olhos, ver aquela luz que caminha pela fresta da cortina e sentir a respiração profunda da casa, em que cada mínimo gesto carrega o horror de ser alto o suficiente. Acordar e sofrer o silêncio asfixiante da noite finda; ouvir a música desajeitada dos primeiros pássaros que - coitados - não tiveram chance de gargarejar ou pigarrear antes de cantar.

E duvidar da cor do céu e das pessoas que acordam cedo, duvidar se se está acordado ou se esse cenário lânguido só existe realmente em sonhos,

- esse pequeno espaço entre alguns instantes de tempo - que horas esse momento é real? -,

o vôo desajeitado de um mosquito do calor; o alaranjado das lâmpadas da rua virando sol. Os passos fúnubres pela calçada, o arrastar-se automático de quem faz o mesmo percurso todos os dias, todos os dias 365 passos e não se passa um ano, mas se chega até o ponto de ônibus, uma corridinha para atravessar a rua e aí não dá pra contar os passos, pois variam, e mais alguns outros tantos, em outros locais e por outros pés, todos caminhando diferentes números para chegar ao mesmo lugar.

Todos indo e você acordando. A casa suspira, e se incha e retrai tanto que chega a parecer um quase-murmúrio. Algum movimento ao fundo - será gente? O caminhão de lixo que passa vagaroso, lúgubre. E um cheiro de saudades tão forte nos lençóis... Então talvez você pense: "Passo tanto tempo aqui, nesta cama, que muito de mim já deve ter ficado nas fronhas, e no canto da parede, e na pontinha do endredon onde encosto a boca, que assim, quem sabe, se um dia eu não dormir aqui, a cama sonha sozinha".