Que eu veja tudo sempre com os olhos de uma criança; que as coisas continuem me causando fascínio e surpresa mesmo com o avançar do tempo; que as pequenas coisas não percam a sua beleza visível ao se tornarem comuns.
Que o vento continue belo e forte, mexendo nas folhas da árvore em frente à minha janela; que a cidade inteira nunca faça silêncio, nem mesmo durante o seu sono, pois é importante saber que ela está sempre lá; que a beleza das cores me impressione, quanto mais os tons luminosos de um amanhecer.
Que as crianças não limpem seus desenhos das paredes; que os jovens não diminuam o volume da sua música e dos seus sonhos de revolução; que os adultos tirem os sapatos por debaixo da mesa e estralem os dedos dos pés; que os velhinhos saiam de casa. Só saiam de casa para ver que o mundo ainda é o mesmo e que toda a grandeza está nos pequenos caramujos que carregam seus lares para lá e para cá, mas pouco se guardam.
Que eu não enjoe de tudo e tampouco sinta o grande temor que antecede um enfado; que eu tenha forças para começar cada dia e que as forças sejam maiores para quando o tempo for sem solução.
Que eu tenha fé, que encontre a crença em algum lugar do meu corpo cansado, pois é isto o que ampara quando a razão é insuficiente (e ela sempre o é).
Que minha família tenha saúde e que todos os dias eu sinta o horror de perdê-los, para lhes dar todo o amor do mundo. Que a preguiça não fale mais alto que a compaixão, e que eu, eu mesma, não fale mais alto que ninguém. Se for preciso, que não fale nada. Que é preciso aprender o valor do silêncio.
Que minhas palavras, quando forem ouvidas, tragam conforto e esperança. Que meus sonhos não envelheçam, nem minhas paixões e nem minhas tristezas.
Que eu caia cem vezes, para me levantar outras cem. Que eu escreva paz em minhas pálpebras e aleluia em meus lábios. Que eu não me perca nas ruínas das futilidades, das vaidades descabidas, da religião, do tédio e da ignorância. Que eu continue pequena.
Um novo dia, uma nova canção,
Amém.
30 outubro, 2008
14 outubro, 2008
flor
Tenho um texto na minha cabeça há algumas semanas: é sobre uma menina chamada Flor, que tem a melhor memória do mundo; ela se lembra desde que saiu do ventre de sua mãe. Vive cansada por que mesmo quando quer se esquecer, ela lembra. Não consegue dormir, quer paz. Pede, então, à mãe, que lhe costure um vestido inteiramente branco.
Com os cabelos presos, os pés descalços e o vestido, sai ao jardim. Flor se junta às companheiras de nome. Pisa em uma, duas, vê que aquilo é bom, se deita, vai rolando pra lá e pra cá por cima das pequeninas flores. Quando se levanta, percebe que seu vestido branco está delicadamente maculado das mais diversas cores, formando uma aquarela impressionista e expressionista. Flor respira fundo e sente-se tranqüila. Saiu de si. Um minuto foi esquecido.
Mas essa história fica pra outra hora.
01 outubro, 2008
Laika
Para ler ouvindo Laika, do Arcade Fire:
Quando a aeronave de Laika pousou suavemente no mar, seu banco se ejetou. Era perto da praia, então nadou até a areia. Sacudiu o sal, cheirou tudo ao redor. Não sabia onde estava, mas era feliz por ter voltado.
Começou a caminhar pela areia. Grossa, preta, com grandes pedras cor de terra escura, bem puxado pro tom de tijolos. Pulava de uma pedra para o chão, e depois outra, outra e outra, em um ziguezague sem fim. O céu era vermelho, cor de vinho. As nuvens, rosas, dançavam frenéticamente com a força do vento. Estava frio. Ia anoitecer.
Laika queria muito encontrar alguém. Sabia que, quando a vissem, iriam se lembrar de seu grande feito - afinal, fora a grande desbravadora do espaço sideral. Sua caudinha balançava suavemente, pois estava tremendamente orgulhosa de sua aventura bem-sucedida.
A noite chegara tão rápido como quando o foguete saiu rasgando da base. O vermelho tornou-se roxo, bem escuro. Ela caminhava sem parar, mas não encontrava viva alma. Chegou ao que parecia ser uma cidade fantasma. Os prédios eram altíssimos e realmente assustadores. Muita coisa havia mudado desde que partira ao infinito: nada lembrava seu antigo lar, nem de longe. Além das ruas vazias, o clima era pesado e havia um cheiro muito forte de podridão.
Todos estavam mortos. Todos. Não havia árvores, pessoas e nem outros cachorros. Só alguns ratos bem pretos e oleosos, que a olhavam de longe, soltavam um grito esganiçado e se entocavam novamente.
Seu passo vagarosamente perdeu o vigor.
Então percebeu o que fez as coisas mudarem: o tempo havia passado. Ela retornou exatos 234 anos depois de sua partida. E era como se estivesse se ausentado por apenas alguns dias; seu pêlo ainda era bonito e brilhante, seus olhos eram vivos, seu jeito de cachorra era como o de antigamente, quando ainda buscava bolinhas atiradas. O tempo não passara para ela, mas tinha sido absolutamente cruel com todas as outras coisas do mundo. O apocalipse havia acontecido debaixo de suas patinhas e ela não tomara conhecimento.
Laika estava sozinha no mundo.
Quando a aeronave de Laika pousou suavemente no mar, seu banco se ejetou. Era perto da praia, então nadou até a areia. Sacudiu o sal, cheirou tudo ao redor. Não sabia onde estava, mas era feliz por ter voltado.
Começou a caminhar pela areia. Grossa, preta, com grandes pedras cor de terra escura, bem puxado pro tom de tijolos. Pulava de uma pedra para o chão, e depois outra, outra e outra, em um ziguezague sem fim. O céu era vermelho, cor de vinho. As nuvens, rosas, dançavam frenéticamente com a força do vento. Estava frio. Ia anoitecer.
Laika queria muito encontrar alguém. Sabia que, quando a vissem, iriam se lembrar de seu grande feito - afinal, fora a grande desbravadora do espaço sideral. Sua caudinha balançava suavemente, pois estava tremendamente orgulhosa de sua aventura bem-sucedida.
A noite chegara tão rápido como quando o foguete saiu rasgando da base. O vermelho tornou-se roxo, bem escuro. Ela caminhava sem parar, mas não encontrava viva alma. Chegou ao que parecia ser uma cidade fantasma. Os prédios eram altíssimos e realmente assustadores. Muita coisa havia mudado desde que partira ao infinito: nada lembrava seu antigo lar, nem de longe. Além das ruas vazias, o clima era pesado e havia um cheiro muito forte de podridão.
Todos estavam mortos. Todos. Não havia árvores, pessoas e nem outros cachorros. Só alguns ratos bem pretos e oleosos, que a olhavam de longe, soltavam um grito esganiçado e se entocavam novamente.
Seu passo vagarosamente perdeu o vigor.
Então percebeu o que fez as coisas mudarem: o tempo havia passado. Ela retornou exatos 234 anos depois de sua partida. E era como se estivesse se ausentado por apenas alguns dias; seu pêlo ainda era bonito e brilhante, seus olhos eram vivos, seu jeito de cachorra era como o de antigamente, quando ainda buscava bolinhas atiradas. O tempo não passara para ela, mas tinha sido absolutamente cruel com todas as outras coisas do mundo. O apocalipse havia acontecido debaixo de suas patinhas e ela não tomara conhecimento.
Laika estava sozinha no mundo.
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